O Projeto de Lei 303/24 propõe uma mudança significativa na Lei de Propriedade Industrial, permitindo que invenções geradas de forma autônoma por sistemas de inteligência artificial (IA) sejam patenteadas em nome da própria IA – em outras palavras, o PL pretende que os sistemas de inteligência artificial sejam reconhecidos como inventores. O autor do projeto, deputado Júnior Mano (PL-CE), argumenta que a legislação atual não contempla a titularidade de patentes por IA, o que poderia gerar incertezas legais e dificultar o avanço tecnológico nesse setor. Para o parlamentar, permitir que os sistemas de IA sejam reconhecidos como inventores incentivaria a inovação e garantiria um sistema jurídico mais eficaz para a proteção dos direitos de propriedade intelectual.
A questão foi levada à Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação da Câmara dos Deputados, onde o relator, deputado Leonardo Gadelha (PODE-PB), apresentou um parecer favorável ao projeto com algumas modificações. Contudo, o parecer também aponta as críticas significativas e as dúvidas que surgem a partir da proposta.
A Crítica à Titularidade de Patentes para Sistemas de IA
Um dos principais pontos de resistência à proposta é a questão da personalidade jurídica. Para que um sistema de IA possa ser reconhecido como inventor, ele precisaria possuir uma identidade legal, algo que, atualmente, é impensável, pois as IAs não possuem personalidade jurídica. Este aspecto levanta um problema central: quem seria o verdadeiro titular da patente caso um sistema de IA fosse considerado inventor? O desenvolvimento de tecnologias que assistem ou criam invenções de forma autônoma levanta a complexidade de determinar a quem pertencem os direitos de propriedade intelectual, especialmente quando vários atores, como desenvolvedores, operadores ou entidades fornecedoras de dados, podem ter contribuído para o treinamento do sistema de IA.
O parecer de Gadelha também destaca uma preocupação com o impacto da atribuição de autoria a sistemas de IA sobre a valorização da criatividade humana. Ao reconhecer a IA como inventor, poderia haver uma desvalorização do trabalho intelectual humano, afetando o incentivo à inovação e ao desenvolvimento das habilidades criativas dos indivíduos.
Essa visão é compartilhada por outras jurisdições, como os Estados Unidos. Em fevereiro de 2024, o United States Patent and Trademark Office (USPTO) publicou uma orientação que reafirma que, no processo de análise de invenções assistidas por IA, a autoria deve ser atribuída a pessoas naturais, uma vez que o principal objetivo das patentes é incentivar e premiar a criatividade humana.
Ambiguidade na Titularidade dos Direitos de Propriedade Intelectual
Outra crítica central do parecer de Gadelha está relacionada à ambiguidade sobre quem detém os direitos da patente, caso a invenção seja fruto de uma criação assistida ou totalmente autônoma de IA. A proposta do projeto de lei não resolve de forma clara essa dúvida, principalmente em relação ao artigo 6º, §2º, da LPI, que trata da legitimidade para requerer uma patente. O relator questiona se a pessoa ou entidade que desenvolveu o sistema de IA, ou o operador da tecnologia, seria o legítimo titular do direito, ou se o processo de invenção passaria a envolver uma nova figura jurídica, o próprio sistema de IA.
O Substitutivo de Gadelha: A Solução Proposta
O deputado Gadelha propôs um substitutivo que visa esclarecer alguns desses pontos. Ele sugere a inclusão de um parágrafo no artigo 6º da LPI que estabelece que, no caso de invenções ou modelos de utilidade desenvolvidos com o auxílio de IA, a titularidade da patente será sempre conferida ao “autor”, ou seja, a pessoa humana responsável pela criação. Além disso, o substitutivo determina que o pedido de patente deverá incluir um relatório detalhado sobre o uso de IA no processo de invenção, classificando o grau de envolvimento da IA em categorias que variam de “ausente” a “integralmente autônomo”.
Outro ponto interessante do substitutivo é a modificação nos prazos de vigência das patentes. O projeto propõe prazos reduzidos para patentes que envolvam IA, com base no grau de auxílio do sistema. Por exemplo, invenções com auxílio predominante de IA teriam um prazo de cinco anos para validade, enquanto aquelas geradas de forma autônoma teriam apenas três anos.
Desafios e Pontos de Incerteza
Embora a proposta de Gadelha tente abordar as questões mais urgentes, ainda existem lacunas significativas que dificultam a implementação do projeto. O substitutivo não resolve de maneira satisfatória a questão da autoria humana, especialmente no caso de invenções geradas de forma totalmente autônoma por IA. O conceito de “autor humano” se torna nebuloso em cenários nos quais a contribuição da IA é predominante ou integral.
Além disso, o projeto não aborda de maneira clara as mudanças necessárias nos critérios de inventividade e aplicabilidade industrial para avaliar invenções geradas ou assistidas por IA. O conceito de “atividade inventiva”, conforme definido no artigo 13 da LPI, aplica-se apenas a pessoas naturais, e a introdução de máquinas nesse processo requer novos parâmetros de avaliação.
Outro ponto polêmico é a proposta de redução nos prazos de vigência das patentes. Há questões jurídicas relacionadas ao cumprimento dos requisitos internacionais, como o Acordo TRIPS, que garante um prazo mínimo de 20 anos para a proteção de patentes. A redução do prazo para invenções assistidas por IA poderia gerar insegurança jurídica, tanto no Brasil quanto no exterior, especialmente em um cenário onde as definições de “auxílio predominante” ou “autonomia total” não estão bem estabelecidas.
O Desafio Global e a Necessidade de Um Consenso Internacional
A questão da autoria e titularidade de invenções geradas ou assistidas por IA não é exclusiva do Brasil. Tribunais e escritórios de patentes ao redor do mundo estão enfrentando o mesmo dilema. A tendência dominante é a de que invenções criadas de forma autônoma por IA não podem ser patenteadas, pois a IA não pode ser considerada inventora. No entanto, enquanto a legislação brasileira caminha para a definição de novas normas, o cenário global ainda carece de um consenso.
O próprio parecer do deputado Gadelha sugere que a falta de uniformidade nas abordagens internacionais pode gerar dificuldades no reconhecimento mútuo de patentes entre países, criando insegurança jurídica para empresas que operam globalmente. Nesse contexto, a proposta brasileira poderia ser considerada precipitada, especialmente quando comparada com os debates que ainda estão em andamento em outras jurisdições, como a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI).
Conclusão
O Projeto de Lei nº 303/2024 coloca o Brasil na vanguarda da discussão sobre a propriedade intelectual e a inteligência artificial, mas também levanta questões complexas sobre autoria, titularidade e a avaliação de invenções geradas por máquinas. Embora a proposta de Gadelha tente resolver algumas dessas questões, há ainda muitos pontos a serem esclarecidos, especialmente em relação aos critérios para definir a inventividade de invenções autônomas ou assistidas por IA. Considerando a falta de um consenso internacional, talvez o melhor caminho seja aguardar um amadurecimento maior dessa discussão, tanto no Brasil quanto no cenário global, para garantir que as futuras regulamentações sejam eficazes e equilibradas.
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Advogado(a) autor(a) do comentário: Marília de Oliveira Fogaça e Cesar Peduti Filho, Peduti Advogados
Fonte: Projeto permite que patente de invenção seja requerida em nome de sistema de inteligência artificial
Patentes: projeto de lei sobre invenções geradas por IA avança
https://www.jota.info/artigos/patentes-projeto-de-lei-sobre-invencoes-geradas-por-ia-avanca
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