E aí? O que é que a gente vai fazer? A“PEC da relevância” e as ações envolvendo direitos de Propriedade Intelectual

Muito se fala sobre o que é, mas pouco efetivamente se sabe sobre como funcionará a chamada “PEC da relevância” (Proposta de Emenda à Constituição nº 209/2012, agora efetivamente Emenda Constitucional 125/2022 diante da promulgação pela Câmara em 13.07.2022), que instaura um novo filtro para a admissão de Recursos Especiais perante o Superior Tribunal de Justiça, similar ao que ocorre com a repercussão geral desde 2004 e efetivamente implementada em 2007.  

Segundo o texto aprovado há poucos meses perante o Senado Federal e, agora recentemente, pela Câmara dos Deputados, a emenda constitucional acrescenta os §§ 2º e 3º ao artigo 105 da Constituição Federal, que passará a prever a demonstração da “relevância” das questões de direito federal debatidas no recurso. 

Apesar de o § 3º elencar hipóteses em que a dita relevância será presumida (ressalta-se que tal acréscimo foi fruto de proposta da OAB, caso contrário, as hipóteses seriam ainda mais sujeitas à discricionariedade), a preocupação há anos em torno do novo filtro é altíssima, mesmo porque existe margem razoável para discricionariedade sobre o que seria relevante. Afinal de contas, existe alguma questão de direito que não seja relevante?

A reflexão é meramente retórica, mesmo porque a promulgação da emenda já é realidade há alguns dias, mas não deixa de levantar inúmeros debates, críticas e preocupações. A primeira delas diz respeito à própria função do Superior Tribunal de Justiça enquanto corte de uniformização de jurisprudência sobre lei federal infraconstitucional e a grave crise que vem acometendo a Corte, que parece não conseguir dar vazão aos processos recebidos. 

Relembre-se que o Superior Tribunal de Justiça foi instituído em 1988 como forma de desafogar o Supremo Tribunal Federal que, por sua vez, antes da introdução da repercussão geral que temos hoje, já apresentava alternativas como o “filtro da relevância” para viabilizar o funcionamento do Tribunal. Agora, passados pouco mais de 30 anos, é a vez do Superior Tribunal de Justiça buscar seu filtro de relevância.

As principais indagações, ou crítica, a esse novo filtro é que já existem inúmeros enunciados sumulares que cuidam de obstaculizar a regular admissão de Recursos Especiais. Os operadores do direito sabem a imensa dificuldade de se contornar a aplicação da Súmula nº 7, que impede o recurso especial que vise reapreciar fatos ou sua existência. Na realidade, como alguns Ministros já tiveram a oportunidade de salientar, a referida súmula não impede que a qualificação jurídica dada ao fato avaliado no Tribunal local seja revista, mas é muito corriqueira aplicação indistinta da súmula, dificultando em muito a busca pela ordem jurídica justa.

Especificamente na Propriedade Industrial, a questão se agrava, pois, sendo de natureza muitas vezes particular o direito discutido, e sendo necessário avaliar a circunstâncias de uso de uma marca ou tecnologia para que seja corretamente aplicado o direito, a inadmissão de recursos é mais que comum, embora não o devesse ser.

 

 

Outro mecanismo introduzido de forma consistente no CPC/15 foi a sistemática de julgamento de recursos repetitivos, até então existente, porém sem efeito vinculante. A sistemática permitiu que permaneçam sobrestados inúmeros feitos e recursos em seus respectivos Tribunais de origem, subindo ao STJ apenas dois ou três afetados como representativos de controvérsia.

No entanto, ou a sistemática realmente não foi capaz de represar a análise perante o Superior Tribunal, ou o referido órgão e os Tribunais Locais ainda não se “alinharam” em termos de comunicação e tempo para viabilizar uma afetação e sobrestamento que sejam realmente efetivos para evitar a proliferação de recursos a serem apreciados pelo STJ. 

Em nossa visão, há ainda tempo e meios de se alcançar uma sistemática realmente efetiva, a começar pela própria uniformização de jurisprudência dentro do próprio STJ que, desde o Código de Processo Civil de 2015, é bastante instável.

Embora se saiba no que consista o filtro da relevância, pouco se sabe, e mais se especula, sobre como realmente o novo filtro funcionará. Já no novo texto do parágrafo segundo surge a primeira dificuldade, pois a parte final prevê que somente não será conhecido o recurso pela relevância “pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento”. Mas, qual órgão seria o competente? Em todo caso, a dúvida tem efeitos de ordem prática e já foi alvo de debate pois, se for a Turma o órgão competente, haveria uma grande dificuldade na própria uniformização de jurisprudência dos Tribunais, eis que cada Turma é composta por apenas 5 Ministros. 

Caso seja o órgão especial, seria criado um problema similar, eis que composta pelos 15 Ministros mais antigos do Tribunal, ou seja, não necessariamente seria uma Turma homogênea em termos de área do Direito (privado, público, criminal etc.). Mais provável que a questão da relevância seja a cargo das Seções ou competência híbrida, que já existe nos recursos repetitivos, e distribui a competência tanto às Seções quanto à Corte Especial, a depender das áreas do direito arguidas.

Mas, independentemente disso, que certamente será esclarecido e regulamentado, fato é que o maior desconforto entre advogados, associações de advogados e a OAB é a operacionalização do filtro e a alta probabilidade de que se crie um enorme obstáculo ao acesso à justiça. É certo que o STJ tem função de corte de uniformização de lei federal e não é uma instância recursal típica (embora atue em alguns momentos dessa maneira), e não se nega que a quantidade de recursos/processos que chegam ao Tribunal é desproporcional ao seu tamanho e número de Ministros (apenas 33). 

No entanto, o que não se pode é criar uma insegurança jurídica ainda maior quanto ao acesso ao Tribunal, que já é penoso em diversas situações de direito material. Afinal de contas, como já pontuamos, o que é uma questão de direito relevante? Da mesma forma que a repercussão geral, nos parece que a “relevância” deve significar a existência de questão relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassam o direito subjetivo da parte, ou seja, dois requisitos: relevância e transcendência. Uma outra pergunta satírica que fica neste texto em prosa é: caso um recurso especial seja inadmitido pela relevância, se estaria declarando que uma questão de lei federal é irrelevante? 

Em direito de Propriedade Industrial, que é o que nos interessa no presente artigo, o filtro da relevância vem para criar mais uma dificuldade ao que já é difícil. Isso porque, boa parte dos litígios envolvendo propriedade industrial dizem respeito ao uso não autorizado de um direito de propriedade intelectual (aqui referidos em acepção ampla) por um terceiro. Evidentemente, a aplicação de uma norma (aqui, em geral as Leis 9.609, 9.610, 9.279/96, o Código de Processo Civil e outras) à uma relação envolvendo direito de Propriedade Industrial é uma questão de direito, ainda que se tenha que realocar a qualificação jurídica dado ao “fato” ocorrido entre as partes, ou seja, uso não autorizado, por exemplo. A princípio, é uma situação de competência do Superior Tribunal de Justiça de típica aplicação da Lei Federal. 

No entanto, o novo filtro da relevância apresenta um grande entrave: Como demonstrar a transcendência do direito subjetivo em uma causa que versa sobre um conflito, a princípio, particular e interpartes? Vejam, aqui a questão já não é mais se demonstrar que se trata de questão de direito para efeitos de não aplicação da Súmula nº 7 mas, sim, de demonstrar que esse direito puro é relevante, ou sejam, atinge de alguma forma a sociedade e, assim, não diz mais respeito apenas às partes envolvidas. 

Tratamos aqui, apenas de algumas digressões a respeito desse novo filtro, mas a realidade é que, como com todas as inovações legislativas, apenas a prática e o tempo vão nos dizer a melhor forma de encarar o filtro da relevância para manter o acesso à justiça.

Não podemos, contudo, perder de vista a realidade inegável atual do STJ e a necessidade de que ocorram mudanças com relação ao número de processos recebidos mensalmente. Só não cremos ser, no entanto, essa, a única ou mais efetiva opção, pois criar um problema na tentativa de suavizar outro, apenas nos parece mais do mesmo.  Tendo como ponto de partida o sistema de precedentes, ainda timidamente explorado pela comunidade jurídico, nos parece que o ordenamento já oferece mecanismos hábeis a tornar o STJ aquilo que nasceu para ser, uma corte de uniformização e interpretação da lei infraconstitucional.

 

Advogada autora do comentário: Rafaella Franco

Fonte: Câmara dos Deputados aprova texto definitivo da PEC da Relevância

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